Por Mariana Fix*
Durante quase todo o mês de março, pudemos conviver com Sérgio Ferro na USP. Algo a celebrar e recordar com muito carinho, ainda que, ao mesmo tempo, nos faça lembrar da perda que representou para a Universidade – e para nós, que poderíamos ter sido seus alunos ou colegas – a ruptura traumática imposta pela ditadura militar, no final de 1970.
A estadia foi dividida entre três espaços: o Museu de Arte Contemporânea da USP (MAC), o edifício Vilanova Artigas e a Maquetaria (Seção Técnica de Modelos, Ensaios e Experimentações Construtivas “José Zanine Caldas”, conhecida como Lame), ambos da FAU-USP.
A exposição de sua obra artística e arquitetônica Sérgio Ferro – Trabalho Livre¹, no MAC (de 15 de março a 15 de junho de 2025), foi o motivo principal da vinda ao Brasil. Começo, entretanto, pelo registro da experiência do “Ateliê Canteiro e Desenho”, que, por sua natureza, teve menor visibilidade. O ateliê mobilizou um grupo de estudantes, técnicos e docentes para produzir duas obras de arte, junto com Sérgio Ferro e José Esparza, pedreiro-construtor francês, amigo e colaborador de Sérgio, que veio ao país especialmente para a exposição e a oficina.

A proposta surgiu numa roda de conversa na abertura da exposição fotográfica Arquitetura Livre na Metrópole Paulista, na FAU-USP, em 12 de novembro de 2024². Nessa ocasião, Sérgio (na tela, em participação remota) nos mostrou o protótipo de uma obra projetada em homenagem a seu ex-aluno Antonio Benetazzo, pintor e estudante da USP, barbaramente torturado e morto pelo aparelho repressivo da ditadura. Benetazzo fora diplomado honorificamente pela USP alguns dias antes, em 1º de novembro, e, em seguida, homenageado pelo GFAUD. O piso do museu, espaço dos estudantes, chama-se, agora, Antonio Benetazzo.
O GFAUD assumiu a organização do ateliê em colaboração com o IAU-USP e o MAC, e a preparação começou ainda à distância. Um grupo formado por estudantes, ex-alunos, pesquisadores e professores³, Jonatas de Sousa Silva (técnico da FAU – Canteiro Experimental/Lame), Sérgio Ferro e José Esparza tomou como ponto de partida o modelo apresentado por Sérgio para definir materiais e procedimentos da execução da obra. Ao mesmo tempo, Sérgio propôs a reprodução de uma segunda peça, em homenagem aos “coletes amarelos”⁴, que já havia sido produzida na França, frente à dificuldade em transportá-la ao Brasil. Os materiais para os dois trabalhos foram coletados em canteiros de obras, entre eles o Canteiro Experimental da própria FAU e outros no campus, antes da chegada de Sérgio e José.
O ateliê começou na segunda-feira com uma reunião no GFAUD e se desenvolveu entre os espaços do Canteiro Experimental e do Lame. A busca pelas soluções técnicas era negociada entre Sérgio, José, Jonatas e os demais participantes, entremeada por conversas sobre Benetazzo, a ditadura, a luta de resistência, arte e arquitetura, e cada um dos elementos que compunham as duas obras. Terminadas, as esculturas foram transportadas para o MAC na quinta-feira. No dia seguinte, Sérgio ministrou uma aula para os estudantes do segundo ano da FAU-USP, no curso de Fundamentos Sociais da Arquitetura e do Urbanismo, no MAC.

Na abertura da mostra, no sábado, as obras já estavam expostas, ainda sem as etiquetas de identificação e ficha técnica. A despeito da distância no tempo, é difícil não notar uma conexão entre essas novas peças e as obras – aproximadas no espaço expositivo – feitas por Sérgio em outro ateliê coletivo, no Presídio Tiradentes, no início da década de 1970.
Mais do que uma retrospectiva, a exposição mostrou-se um espaço vivo e intenso de produção, pesquisa e reflexão. Durante duas semanas, Sérgio participou de cerca de 15 debates, alternando-se entre mesa e plateia, em diálogo com uma audiência atenta e numerosa⁵. No segundo dia da exposição, a mesa “Sérgio Ferro, Escultura e Política” foi dedicada ao compartilhamento da experiência do ateliê de produção das duas obras com o público. Alguns dos temas das outras mesas: arte e política, pintura, escultura, função social do arquiteto, as obras de Flávio Império e Rodrigo Lefebvre, o grupo Arquitetura Nova, ditadura, o ateliê no Presídio Tiradentes, habitação e autogestão, canteiros experimentais e emancipatórios. Uma oficina sobre técnicas construtivas, abóbadas e cascas, e o lançamento dos livros Arquitetura e Trabalho Livre I e II compuseram ainda a programação, que continuou depois da volta de Sérgio à França. Ermínia Maricato e Renato Tapajós, por exemplo, discutiram seu conhecido curta-metragem Fim de Semana (1975), que teve a obra de Sérgio como referência.
Durante a exposição, José voltou ao Lame para retomar os trabalhos, agora para a preparação de uma segunda peça de cada obra. Assim, o ateliê se prolongou por mais uma semana, desta vez com a proposta de utilizar técnicas e materiais que dessem mais autonomia aos estudantes para produzir a obra sem o uso de equipamentos que exigem a supervisão de técnicos. Sérgio voltou também à FAU diversas vezes, entre um compromisso e outro, para trabalhar nas esculturas e, ainda, para uma conversa-entrevista com seu ex-professor (e depois colega) Nestor Goulart Reis Filho, a convite da professora Beatriz Bueno.
Em “caráter de reparação frente aos atos de exceção praticados no passado contra o professor” e “em reconhecimento da dimensão que sua obra teórica alcançou, nacional e internacionalmente”⁶, a Direção convidou Sérgio para uma aula magna, que ele transformou em diálogo com os estudantes que lotaram o auditório. A mesa virou também uma celebração da concessão do título de Doutor Honoris Causa da USP a Sérgio, aprovada dois dias antes. Outra ótima notícia é que, prevista para se realizar no final do ano, a cerimônia deverá contar com a presença de Sérgio.
* Professora da FAU-USP e pesquisadora do INCT Produção da Casa e da Cidade.
¹ Exposição realizada com a curadoria de Fábio Magalhães, Maristela Almeida e Pedro Arantes, e expografia de Haron Cohen.
² A exposição foi produzida pelo Coletivo Arquitetura Livre de estudantes de graduação e pós-graduação USJT, com curadoria de Francisco Barros, Jade Percassi e Christian do Nascimento, promovida pelo GFAUD.
³ Integrei o grupo junto com João Marcos Lopes (diretor do IAU-USP), Lara Melotti Tonsig (doutoranda do IAU) e Francisco Barros (NAPPLAC FAU-USP), Christian Almeida Campos do Nascimento, Christian Almeida Campos do Nascimento, Aryane Rodrigues, Vitor Nader e Geovanna Beatriz (GFAUD).
⁴ O movimento dos gillet jaunes ou coletes amarelos, no qual José tomou parte, reivindicava melhores condições de vida diante das medidas de austeridade do governo francês de E. Macron.
⁵ Parte das gravações disponíveis em: www.youtube.com/playlist?list=PLmYT-4w1wSWbT_4oBjoqwjR9iljrRtx5Z
⁶ Cf. https://www.fau.usp.br/eventos/homenagem-e-bate-papo-com-sergio-ferro. Sérgio foi acompanhado na mesa por José Esparza, Vitor Nader (Gfaud), João Whitaker Ferreira (diretor da FAU), João Marcos Lopes (diretor do IAU-USP), José Lira (diretor do MAC) e Pedro Fiori Arantes (curador da exposição e editor de livros do Sérgio).