Resenha do livro “A cidade do pensamento único: desmanchando consenso”, de Otília Arantes, Carlos Vainer e Ermínia Maricato

João Sette Whitaker Ferreira
Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo

Em 1995, Ignacio Ramonet cunhava pela primeira vez, no Le Monde Diplomatique, o termo pensamento único, como a “tradução em termos ideológicos com pretensões universais, dos interesses de um conjunto de forças econômicas, e em particular das do capital internacional”. O jornalista alertava para a hegemonização – no sentido de que não deixava espaço para contrapontos – de u;o para contrapontos – de um instrumental ideológico que visava impor universalmente o domínio absoluto da economia e do mercado sobre os rumos políticos, sociais e culturais do mundo globalizado pós derrocada soviética. Um modelo que chegara aqui com força total desde 1990, através da aplicação por nossas elites da cartilha do Consenso de Washington. Nesse contexto, as cidades não só cumpriram o papel de portas de entrada para essa imposição, como se tornaram elas mesmas instrumentos de competitividade e enriquecimento na nova economia global. Infelizmente para os que acreditam no papel transformador da crítica ao status quo, a maioria das análises sobre o urbano na era da globalização disponíveis até hoje endossaram esse papel e caíram no senso comum (ou na armadilha ideológica) da inevitabilidade e inexorabilidade do pensamento único. Por sorte, há exceções. A Cidade do Pensamento Único é uma delas.

No primeiro texto do livro, Otília Arantes revela como surge já nos 70, com a crise do fordismotaylorismo, uma nova matriz liberal de planejamento, inspirada na gestão empresarial e baseada na idéia da cidade como máquina de crescimento, isto é, “máquina urbana de produzir renda”, e que entre outra e que entre outras designações, tornou-se conhecida por Planejamento Estratégico. Segundo essa matriz, sobreviverão no mundo global de extrema competitividade, as cidades que conseguirem uma coalizão entre as elites fundiárias e os empreendedores de negócios “decorrentes das possibilidades econômicas dos lugares”, visando o crescimento econômico a qualquer preço através da obtenção de vantagens na competição permanente entre lugares pela atração do escasso e volátil capital internacional. No centro desse processo, que coagiu o “espetáculo como forma de resistência” para transformá-lo em “forma de controle social”, a cultura aparece como um novo e fantástico empreendimento econômico, que facilita a fabricação de consensos em torno da idéia de que somente a inserção na rede global de cidades será capaz de gerar crescimento, empregos e modernidade. Associados aos políticos, ao grande capital e aos promotores culturais, os planejadores urbanos, agora planejadores-empreendedores, tornaram-se peças-chave dessa dinâmica. Esse modelo de mão única, que passa invariavelmente pela gentrificação de áreas urbanas “degradadas” para torná-las novamente atraentes ao grande capital ao grande capital através de mega-equipamentos culturais, tem dupla orígem, americana (Nova-York) e européia (a Paris do Beaubourg), atingindo seu ápice de popularidade e marketing em Barcelona, e difundido-se pela Europa nas experiências de Bilbao, Lisboa e Berlim.

Otília ressalta a impossibilidade de alguém “minimamente responsável” propor a aplicação desse modelo que reduz a cidade a mero espaço de negócios, no contexto social dos países subdesenvolvidos. Pois bem, Carlos Vainer nos lembra que nossas elites não primam exatamente pela responsabilidade. Em seu segundo texto, Vainer testemunha a implantação do Planejamento Estratégico da Cidade do Rio de Janeiro. Uma “bem orquestrada farsa”, com o objetivo de legitimar “projetos caros aos grupos dominantes da cidade”, a saber, tudo aquilo que permitiria a produção da “máquina de crescimento” carioca, competitiva e vendável à dinâmica do capital internacional. Vainer desnuda as manobras para colocar em escanteio as reivindicações populares, dando espaço aos interesses dos empreendedores e a um agressivo marketing para criar falsos consensos que legitimassem a farsa. Tais ações soam coerentes com as colocações de seu primeiro texto, no qual mostra, através da an&avés da análise exaustiva das argumentações teóricas dos consultores barcelonenses, a mise-en-place de um arsenal político-ideológico-empresarial destinado a impor universalmente, à maneira do pensamento único e com a indefectível cooperação das elites do Terceiro-Mundo, a matriz do Planejamento Estratégico segundo a qual a sobrevida das cidades está em sua transformação em mercadoria.

Com o mesmo brilho dos textos anteriores, Ermínia Maricato fecha o livro perguntando se essa nova matriz seria resultante “de um processo endógeno calcado na práxis urbana” ou seguiria novamente um “caminho de dominação econômica, política e ideológica de inspiração externa, reproduzindo modelos alienados de nossa realidade”. Ermínia Maricato passeia com desenvoltura pela história do planejamento urbano no Brasil, demonstrando a infinita sobreposição de modelos de dominação que, utilizando-se do controle sobre o poder político e a burocracia estatal, a legislação, e a economia, permitiram a eterna produção de um espaço urbano de segregação espacial e exclusão social, voltado apenas aos interesses das elites dominantes. Ermínia mostra que a praxis tra que a praxis urbana no Brasil tem origens na nossa estrutura colonial, e é hoje produtora da cidade desigual, dividida entre um pequeno território legal onde se reproduzem os interesses econômicos das elites e a enorme parcela da cidade ilegal, abandonada à sua própria sorte por um Estado – e um planejamento urbano – que há muito se descolaram – pois era esse seu interesse – da realidade da maioria. Como seria possível, nessa matriz social oriunda de uma “industrialização de baixos salários”, que necessita de uma profunda reestruturação política, econômica e social, a importação de um modelo de cidade global que exacerba a exclusão e a criação de oportunidades para poucos privilegiados? Como diz a autora, essa representação da “cidade” é uma “ardilosa construção ideológilógica que torna a condição de cidadania um privilégio e não um direito universal: parte da cidade toma o lugar do todo”. E, mostrando que também na área urbana podem sim existir – e de fato existem – propostas efetivas que se contraponham ao pensamento único, Ermínia Maricato finaliza analisando diversos instrumentos de planejamento voltados para o necessário desenvolvimento includente das nossas cidades.

Como é de praxe na coleção Zero à Esquerda, este livro é radical. Radical no sentido colocado por Bobbio, ou seja, que tem como “claro objetivo o abandono de qualquer hipótese temporizadora” na busca de uma “vigorosa renovação nos vários setores da vida civil e da organização política”. Por isso mesmo, este é um livro imprescindível.

Em tempo: para esta resenha não ficar sem críticas, perguntamos porque a ótima apresentação do livro ficou sem assinatura.

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